Longe dos turistas
03/05/13 08:37NEW ORLEANS – Em seu miolinho, movido a música e turistas, New Orleans parece a mesma de sempre.
O festival de jazz que começou na última semana e segue até este domingo atraiu uma multidão possivelmente tão grande quanto a do ano passado (um recorde, 450 mil). Os restaurantes estão cheios. Os hotéis, apesar dos preços altos, também. As pessoas estão felizes, bebendo nas ruas (como nunca se vê nos EUA), lotando os parques, e se movimentando entre as ruelas do French Quarter, os casarões históricos do Garden District e os restaurantes modernetes do Distrito Financeiro.
A meia hora de ônibus circular desse coração festeiro da “Big Easy”, porém, os vestígios do furacão Katrina, que assolou a cidade há oito anos, ainda são visíveis. No bairro do Ninth Ward (que em português poderia receber a soturna tradução de Pavilhão Nove), o entulho em que se transformaram as casas inundadas foi retirado. Mas a reconstrução de que a cidade tanto se orgulha nunca chegou verdadeiramente até esses quarteirões desolados, habitados por uma classe média baixa e predominantemente negra.
Ali, os terrenos baldios são tão ou mais numerosos do que as casas reconstruídas. A tradição local é de construções de madeira, e muito do que a água levou jamais voltou a ser refeito. Algumas casas novas pontuam as quadras amplas, se alternando com as plantas que crescem sobre a calçada despreocupadamente. Mas as poucas casas de tijolos destroçadas pelo furacão ainda servem de atestado para a memória, abandonadas, comidas pelo mato.
Eu estive em New Orleans por apenas quatro dias (infelizmente, só peguei o primeiro dia do festival, com os preços proibitivos de hoteis). Mas uma coisa que precisava fazer era checar o que havia acontecido com a Ninth Ward, sobre a qual nós jornalistas tanto escrevemos oito anos atrás.
Para chegar ali, é preciso pegar um ônibus circular, que vai ficando mais e mais vazio conforme cruza as pontes sobre canais e o rio Mississippi. Mas não é preciso ir até a Ninth Ward para ver pobreza. Pertinho do miolo turístico, a poucas quadras de onde o pintor francês Edgar Degas (1834-1917) chegou a morar por alguns meses, no bairro do Treme, o descaso já é nítido, com lixo acumulado e casas sujas e depenadas. Mais adiante na viagem, em Bywater e adjacências, as casas continuam em pé,e muito próximas umas das outras como eram no bairro vizinho.
Muitas ainda têm tatuadas a marca sinistra do Katrina, a cruz pichada, marcando quantos adultos, quantas crianças, quantos animais e quantos corpos haviam ali para ser resgatados. Vidraças e portas destruídas nunca voltaram para o lugar, dando espaço para pedaços de tábuas pregados nas janelas e batentes, para inibir saqueadores e intrusos.
Para parte dos analistas políticos, o Katrina, mais do que a Guerra do Iraque, selou o destino político do então presidente George W. Bush. O despreparo com que a tragédia foi tratada, depois de acontecer, acabou marcando mais do que os anos de negligência que levaram a ela. E não que no atual governo isso tenha mudado, pelo menos não ali, no sul profundo — não no Mississippi (que eu visitei no ano passado), não na Louisiana, não no Alabama.
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Antes de escrever este (adiado) post, estava lendo uma reportagem do New York Times sobre o aumento abrupto dos suicídios entre os americanos de meia-idade. A crise, o descaso, a pobreza — depois de três anos aqui, a impressão é que não são só as casas de New Orleans que ficaram permanentemente marcadas por ela.
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Este post marca também uma espécie de despedida, ainda que uma despedida lenta. Volto ao Brasil no mês que vem, para a Redação da Folha, com a missão cumprida. Foram três anos incríveis nos EUA, cobrindo a campanha eleitoral e os efeitos da crise, e tentando mostrar lados do país que conhecemos menos.
Os spams têm consumido a caixa de mensagens, e o tempo até o meu retorno vai ser muito apertado para manter o blog em dia (já não o fiz nas últimas duas semanas), mas estou aberta a responder pedidos e sugestões de leitores sobre lugares nos EUA que merecem ser visitados.
A todos que acompanharam, criticaram, elogiaram e, sobretudo, debateram, um enorme obrigada.